Cresci numa casa de professoras. E,não por acaso,numa casa cheia de livros por todos os cantos (benza Deus!). Morava numa casa com mais seis irmãs e a diferença de idade de mim para a irmã seguinte é de quase 4 anos,portanto sempre fui mais a solitária. Brincava sozinha,mas nem me importava com isso,porque as vezes as outras crianças não conseguiam mesmo entender nem acompanhar aquele mundo tão grande e fantasioso que eu trazia dentro de mim. Pra aumentar ainda mais a minha solidão, minhas irmãs ou trabalhavam ou estudavam e eu ficava sempre sozinha em casa em algum momento do dia. A solidão me foi deveras importante. Ela me serviu de bússola de mim mesma...
A combinação entre solidão e livros é linda,pode crer! Lembro da estante de madeira (ainda viva) que se quardava os livros da casa. A maioria eram didáticos, de Português (porque a maioria de minhas irmãs são formadas em Letras e professoras de Língua Portuguesa) e eu dorava ficar procurando tirinhas,narrativas,poemas,crônicas nesses livros. As vezes até decorava trechos ou anotava em algum caderno alguma parte que tocava minha alma derretida. Tinha também nessa estante os livros católicos (porque minha família sempre foi católica e engajada em pastorais e grupos eclesiais da igreja),alguns de hinos,outros de dinâmicas de grupo,outros de catecismo. Não posso esquecer da coleção da revista Mundo Jovem, que tínhamos assinatura e que trazia sempre temas atuais com uma linguagem meio religiosa e muito crítica. E claro, tinha os livros de historinhas, os romances, as biografias, as coletâneas de poemas, os de auto-ajuda e alguns clássicos da literatura nacional,"surrupiados" de bibliotecas mundo a fora (não façam isso! RS). As vezes eu inventava de ir limpar tal estante, só pra ter a desculpa de ficar lá, em meu momento de desbravadora. E ficara horas "viajando" em páginas velhas e amareladas ou novinhas e cheirosas. A estante velha de madeira da minha casa em Lago da Pedra era um mundo à parte pra mim. Como aquele cantinho aguçava meu lado inerentemente sonhadora de ser...
Dentre os tantos achados em MINHA estante velha,um me faz lembrar com mais carinho. Foi o dia em que encontrei um livro fininho,azul,com nuvens na capa e que falava de perdão. Era um livro comprido,de caráter religioso e eu o achei bonito. O prefácio do livro,veja que maravilha, era um texto que falava de AMOR. Um livro sobre perdão que começava falando de amor. Ali já vi o quão substancial me seria aquela leitura,porque amor e perdão são,de fato,um só...
Sabe,perdoar é tarefa difícil, requer grandeza e altruísmo. Pede de ti uma leveza e uma doçura na alma, que não condiz o que aprendemos nesse mundo de cão. E por isso mesmo,quantas vezes fingimos perdoar...mas fica ali aquela agulhinha de mágoa que nos espeta vez ou outra e ate nos faz sangrar. E ainda tem essa pedagogia do "não preciso adular ninguém" ,que a contemporaneidade de egoísmo-civilizado prega. Nos é imposto que não precisamos pedir tanta desculpas assim,porque somos independentes e polivalentes e coisa e tal. Mas a gente sabe que o vazio deixado por uma pessoa que a gente quer bem é impreenchível... É oco,é escuro e tem gosto de fel. O mundo moderno talvez perdoe menos,porque desaprendeu a amar. E desaprendeu a amar porque não quer perdoar. E não quer perdoar porque o fetichismo que o sistema provoca nos afasta do sagrado e do divino...
O texto do prefácio do livro que achei na estante da minha casa era de Martin Luther King, um mártir na luta pela justiça racial e pregador incansável do amor entre as gentes. Falava das três palavras que o Velho Testamento Grego trás para "AMOR" - eros,philos e ágape. E tenho viva na minha mente a explicação que ele dava à palavra ÁGAPE: " ...é boa vontade ativa e redentora para com todos os homens. Os Teólogos diriam que é o amor de Deus agindo no coração humano. Ágape é uma espécie de amor desinteressado, supremo. Era à esse tipo de amor que Jesus se referia quando pregava "AMAI OS VOSSOS INIMIGOS" e dou graças por Ele não ter dito "gostai de vossos inimigos"! Porque gostar é uma emoção afetiva e eu não posso gostar de que me bombardeia a casa,eu não posso gostar de quem tenta espezinhar-me com injustiças,mas tenho que amar e perdoar,porque Deus o ama e porque somos todos irmãos..."
Claro que as palavras não eram exatamente essas,mas chegam muito perto. Essa mensagem entrou em mim e la tem lugar cativo. Sempre que me deparo com alguma dessas pessoas amargas e cinzas que a vida nos apresenta, eu lembro de tudo isso...lembro das palavra do Velho Testamento Grego citada por Luthet King no livrinho azul.
Quem diria que uma estante velha de madeira carregaria um exercício de vida num livrinho fininho e modesto de capa da cor do céu...
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| e o antídoto é sempre o amor... |
