quinta-feira, 22 de maio de 2014

Capítulo 01

Maria do Céu

Era uma tarde de novembro. O céu estava alaranjado, o sol quase indo se deitar. Maria do Céu estava sentada numa cadeira velha, no alpendre de sua casa, olhando o nada. Na verdade, quando Maria olhava o nada, ela estava, de certo, olhando tudo. Porque Maria era daquelas que viajava em pensamentos, que sonhava acordada, que desenhava nas nuvens, que criava cenas e diálogos dentro de si. Se algum pintor visse aquela cena, certamente iria querer retratá-la, porque Maria estava bela, aliás, Maria estava graciosa, porque bela, muitas são, mas ter a graça que aquela caboclinha tinha, não era tão comum. Beleza é menos substancial que graça. Até o anjo disse à outra Maria: “Ave cheia de graça!” e não “Ave cheia de beleza”. E Maria era mesmo graciosa por excelência. Estatura mediana, pele clara, olhos amarelados e cabelos ondulados, castanhos, longos, já chegando à cintura. Seus olhos eram grandes, expressivos, atentos e ao mesmo tempo distantes. Tinham um certo mistério, uma certa magia. Uma réstia de sol iluminava seu rosto, fazendo os cabelos ficarem como da cor de mel silvestre. Ela olhava o horizonte, sabendo haver muita coisa depois.
Maria volta a si com o grito de sua mãe:

- Maria do Céu!

-Senhora, mãe?

- Vem aqui ajudar na janta menina! Para de ficar aí feito estauta, olhando pro nada. Um dia ainda te dou uns tapa, pra largar de ser avoada.

Dona Francisca não entendia que Maria levava um mundo a parte dentro de si. Não entendia suas “viagens”, seus devaneios, suas flutuações. Dona Francisca era prática, a vida dura lhe ensinara a ser assim. E era uma mulher de muita fibra, forçadamente forte, hiperativa. Resolvia tudo muito rápido, nunca estava parada. Cuidava da casa e da família com mãos de ferro. E amava tudo aquilo, mas à maneira dela – bruta, simples e até meio fria. Mesmo mal cuidada e gasta pela vida dura, era mulher bonita. Cheia de curvas, cabelos longos e negros, rosto marcado pelo tempo cruel, mas que conservava um ar de santa de igreja do interior. Não era mulher de melosidades nem de esperas. Ia lá e fazia. E a verdade é que Dona Francisca segurava aquela família. Ela era o porto seguro. Tinha pulso, tinha sangue corrente, tinha gana. E nisso Maria saiu á ela, com a diferença que Maria era inteira tecida de sonhos, era visionária - nisso saiu ao pai.
Da panela em cima do fogão de barro saia um cheiro gostoso de fava fresca e a outra boca também estava acesa aguardando o complemento do jantar.
- Vá catar o arroz, Maria. Minha fia, se avie pro mundo! Já te falei tantas vez  que gente desaluída fica no mei da estrada. Se atente, Maria do Céu, se apulume!
- Mãe não sabe nada de mim, do que penso. Aliás, a senhora quer eu seja  que nem essas meninas daqui, tudo abestada. Casar, ter um monte de filho, se acabar de trabalhar, cuidar da casa, dos meninos, do caba ruim que ela arrumou. Eu não! Quando eu tô parada, mãe, eu tô sonhando. ..Sou mais apulumada do que mãe pensa.

-Hum...  sonhando...hen-heim...

- Cadê papai? Nunca chegou?

Maria perguntava, enquanto estava de cabeça baixa, sentada num tamborete feito de couro de animal, com o quibane de arroz nas pernas.

- Nam. Tu num sabe como é Ferreira? Insegueirado com terra. Tá lá olhando os pé de maxixe. Inté penso as veiz que ele gosta mais do sítio do que de mim.

Maria rir baixinho.

- Mãe tá com ciúme de uma terra? Ele lhe quer bem demais...todo mundo ver.

Dona Francisca fica meio encabulada, deixa sair um risinho de lado, escapulindo. Um riso de orgulho e de amor recíproco. Ela sabia sim que era muito amada por aquele velho.
Maria termina com o quibane de arroz e se volta para a janela. Sua casa era um sítio modesto, afastado da pequena cidade. Tinha muitas árvores ao redor. Pé de muita coisa, galinhas e capotes sempre passeando pelo quintal. Uma horta pequena e caprichosa que Dona Francisca cuidava com muito zelo e um curral bem pequeno, onde seu Ferreira criava umas cinco rezes. Ela começa a pensar de novo, na mesma coisa que pensava quando ainda estava lá no alpendre. A mesma coisa que pensava todos os dias: o MAR. Maria do Céu, era, antes de tudo, Maria do Mar.
Ela era fascinada pelo mar desde muito pequena. Quando o mar se mostrava na TV, Maria paralisava. Fica inebriada. Ela achava o mar a coisa mais linda do mundo. Aquela imensidão, aquele mistério. O mar lhe causava certo medo, mas o medo lhe causava curiosidade. Ela ficava a imaginar seu encontro com o mar. Pensava no gosto do mar, no cheiro do mar, na cor do mar, no som do mar, na textura do mar. Maria sonhava em sentir o mar de forma total. Se juntarem, se fundirem, como num só. Ela gostava de pensar que havia um reino encantando lá nas profundezas. Com tudo que reino encantado tinha direito: princesas sereias, duendes marítimos, reis, bruxas, plantas que falam, bichinhos de todas as feições. E ela era a rainha que todos estavam aguardando chegar. Maria do Céu sonhava em ser Maria, a rainha do mar...
Não sabia explicar como tinha começado esse fascínio. Só lembrava que quando ainda era muito criança viu o mar na televisão 24 polegadas da sala de sua casa. Não parou de olhar, nem piscava. Era a cena de uma novela. O casal de mocinhos felizes e correndo, à beira daquele mundo de água que não parava de mexer e fazer barulho. Depois disso, Seu Ferreira e Dona Francisca tiveram que se informar muito, porque Maria era só perguntas sobre o mar. No seu aniversário de 7 anos, ganhou uma boneca de pano bem mimosa da mãe. Ela tinha os olhos clarinhos e cabelos longos que nem Maria e tinha cheirinho de alecrim. Seus olhinhos brilharam, mas todo o encanto foi transferido para o presente do pai. Seu Ferreira trouxera uma concha.

- Bota no ouvido, fia, assim. Tá escutando? É a zoada do mar. Pai trouxe um poquim de mar pra minha fia.

Maria estava num estado de encantamento indizível. Ela fechou os olhinhos e se imaginou pela primeira vez no reino perdido do mar que povoou seus sonhos todas as noites depois daquele dia. O pai sorri contente ao ver que agradou a filha. Maria, num gesto de profundo agradecimento, abraçou a perna do pai, que lhe beijou os cabelos de mel.

E muitas outras conchas vieram depois. O quarto tinha uma coleção delas. Quartinho simples, mas bem arrumado, caprichoso. Os móveis feitos pelo pai, os fuxicos e bonecas de pano feitos pela mãe. Uma estante só de livros, outra só de conchas. As janelas pintadas de verde clarinho. Maria do Céu era filha única - coisa atípica no interior no nordeste. Mas ela não era Maria do Céu a toa. Foi promessa para Nossa Senhora. Dona Francisca teve gravidez arriscada, os sustos foram muitos, se apegaram na fé. Devota de Maria, a sertaneja implorou, com olhos marejados, olhando para santa, num altar cativo da casa, que se a filha vingasse, homenagearia e serviria à Rainha do Céu. Nessa altura ela já sentia, sem saber explicar, que carregava uma menina. E Maria veio rosada e pequena, sadia e perfeita. Se tornou a alegria da casa. Os pais lhe davam e faziam tudo o que estava ao alcance. O que era deveras pouco e limitado. Dois caboclos, sem estudo e com muita fé.