Capítulo 04
Acalento
O
dia foi cheio. A agência de publicidade onde Maria trabalhava era sempre
geradora de dias cheios. Maria, que já era do Céu, voou ainda mais naquele dia.
Voou em pensamentos. Ela ouvia e via nitidamente o riso de Henrique. Aquela
risada que acalentava. Horário do almoço, ela pensou muito em ir até o
quiosque. Talvez comer por lá e conversar um pouco mais com aquele rapaz que
ria, acalentando. Mas achou melhor não. E se detestava por isso. Por essa mania
de sempre achar melhor não ir lá fazer uma ousadia, por menor que fosse. “Onde
estaria aquela menina danada lá do interior?”, ela pensava. Talvez tivesse
ficado lá. Maria esqueceu de botar na mochila, naquele dia da partida, a
coragem e a gana daquela caboclinha.
Botou tanta vontade de ver o mar e de estudar, que nem lhe veio lembrança das
demais coisas que poderiam ser tão útil na vida de menina interiorana na cidade
grande.
Chegou
a sua casa ás 19:00 e César não estava por lá. Silêncio e escuridão total.
Jogou as chaves e a bolsa em algum canto, se esparramou no sofá. Pensou que ele
na certa não viria para dormir. Não sentiu vontade de ligar e perguntar. Pensou
na noite anterior. Lembrou da camisa de Henrique. Que língua era aquela mesmo?
Que tinha escrito lá? Lembrou da barba cerrada. Lembrou do cabelo meio
bagunçado, dos chinelos. Da pulseira estilo hippie e até de uma cicatriz no
pescoço. E se ela fosse até lá? Ela se assusta com o que pensa. Para. Titubeia.
Mas de repente rir. Riu por está sendo corajosa. Não quis desperdiçar isso. Foi
até o quarto, tomou um banho relaxante, escolheu uma roupa bem leve, uma
sandália rasteirinha, passou seu perfume adocicado e suave e um batom vermelho,
de textura seca, que ela adorava. Olhou-se no espelho, respirou fundo e foi,
antes que se arrependesse, antes que a coragem fugisse.
Dessa
vez foi no seu carro. Chegando perto, viu que o quiosque estava movimentado.
Muitas mesinhas, muita gente conversando, gente no balcão. Acha dificuldade
para estacionar, até que consegue a vaga do siena que estava saindo. Ela está
nervosa. Respira ofegante e até treme um pouquinho. Há muito tempo Maria não se
sentia assim, apreensiva e ansiosa para ver alguém. Principalmente alguém que
ela mal conhecia. Chegando perto do bar, avista Célia servindo uma mesa. Ela
está numa saia longa e os cabelos vermelhos presos num rabo de cavalo. Olha para
além do balcão e avista ELE, despachando bandejas com bebidas. Ele estava
lindo, ela pensou. Só dava para ver a camisa. Era azul com um desenho psicodélico.
Maria pensa que não foi boa ora para ir até lá. Todos estavam muitos ocupados.
E se vira para ir embora.
-
Maria!
Ela paralisa. A respiração
fica ainda mais ofegante. Era a voz dele. Aquela voz mansa e rouca que ela
passou do dia inteiro ouvindo. Vira-se e vê Henrique se aproximando com um sorriso
largo. Ela sente paz. Como aquele cara lhe passava paz...
-
Maria, bom que veio. Fiquei com medo que não viesse. – fala olhando nos olhos
dela.
-
Com medo?
- É.
Quando a gente quer muito uma coisa, tem sempre um medinho de não rolar
embutido na parada, né? – Ele fala com segurança. Sem o menor desconforto ou
timidez ou receio.
-
Você então queria muito que eu viesse? – Ela pergunta apenas para sentir o
deleite de ouvir a resposta.
- Há
muito tempo que eu não quis tanto assim uma coisa, Maria.
Ela
rir e baixa o olhar. Ele pega na sua mão. A mão dele era quente. Ela treme u
-
Vem, Maria. Senta um pouco. Já eu venho falar com você. Quer beber o quê?
- O
que você me sugere?
-
Olha... confia já assim em mim? Eu vou sugerir o drink mais famoso da casa.
Chama heiße Liebe. Mas vou logo avisando, é forte.
-
Tudo bem. Eu aceito a sugestão, se você me explicar esse nome aí que eu nem
decorei.
Rick
rir e chega junto dela, tão junto, que Maria tarava a respiração. Fala no
ouvido dela:
- Me
espera só uns minutos, que eu te explico e ensino muitas coisas. – se afasta e dá uma piscadinha charmosa.
Ela
se arrepiou com aquela voz no ouvido. E sentiu o perfume amadeirado dele. E o
cheiro de álcool e de cigarro da boca dele. Maria, sem entender bem, sentiu um
desejo gigante naquele momento. Senta-se na mesa e em pouco tempo, um rapaz
franzino lhe traz a bebida. Era mesmo forte. Tinha gosto de morango, vinho,
framboesa, vodca. Era doce também. Ficou tentando pronunciar o nome, algo como
“raissi libi”.
Meia
hora depois, Henrique chega na mesa, senta e
olha nos olhos dela, com aquele sorriso que desarma.
-
Gostou do drink, Maria? – ele olha mais precisamente para a boca dela.
-
Gostei. Muito. Raissi Libi né?
-
Olha, já sabe até alemão!
-
Ah, então é alemão? Que curioso. E o que significa? E por que o alemão?
-
Vamos fazer assim, eu vou deixar a Célia e o Cazé segurando as pontas aqui.
Hoje o bar fecha cedo, é quarta, tem futebol. A gente vai pra outro lugar e eu
te respondo tudo o que quiser, topa?
-
Fechado.
-
Perfeito. Então vou lá pegar meu carro.
- Eu
tô de carro hoje.
-
Então, como a gente faz?
- Eu
pensei que a gente poderia ir praquele bar lá perto da minha casa. Lá é legal.
Tem sempre músicas boas.
-
Por mim tudo bem. Eu te sigo então.
No
caminho, que era bastante breve, Maria sentia certa vertigem. Ela pensa que a
última vez que se sentiu assim foi no primeiro encontro com César. Ela então
lembra de César. Eles eram namorados e moravam juntos. Por mais difícil que
estivesse a relação, eles não haviam rompido e então Maria se sente mal por
estar fazendo algo “errado”. Mas que bobagem, ela não estava o traindo – ela
pensa. Era só um encontro com um amigo que conhecera que fora deveras gentil
com ela. Se sente melhor com essa auto-desculpa. Mas no fundo não podia
controlar a curiosidade e o desejo que Henrique lhe causava. Ela lembra que leu
uma vez num livro que “desejo é a vontade de não se controlar”. Ri de canto. E
gosta daquela Maria corajosa e ousada, igual a Maria lá do Sítio Maria
Santíssima, que morava com os pais e sonhava no alpendre.
Henrique
estaciona logo atrás dela. Os dois entram no bar e Maria o guia até uma mesinha
mais no fundo do ambiente. O garçom se aproxima e cumprimenta Maria com ares de
velho conhecido.
-
Pezão, traga uma cervejinha bem gelada e aqueles camarõezinhos empanados.
Percebe que fora extremamente mal educada por não ter pedido a opinião de
Henrique e fala constrangida:
-
Puxa, me desculpe, terminei pedindo o que sempre peço e nem te consultei nada,
desculpa...
-
Maria, eu não tenho nada a reclamar. Quem não gosta de cerveja e camarão, bom
sujeito não é!
E
rir um riso aberto e, claro, DE ACALENTO. Maria rir também.
- É
que eu venho sempre aqui com o César e peço sempre isso...
Percebe
que falara demais e fica sem saber mais o que dizer ou ao menos onde por as
mãos. Mas Henrique não pergunta nada. Ele ficou sim curioso para saber quem era
o tal César que sempre vinha com a sua Maria àquele bar, mas não quis ser
indiscreto ou invasivo.
Sim,
para ele, ela já era sua. Ele a desejava e tinha bem-querer por ela. Sentia
vontade de cuidar daquela mulher-menina tão frágil e tão forte ao mesmo tempo.
Sentia vontade de tê-la como mulher e como amiga, na sua cama e na sua vida,
sempre do seu lado. Era estranho sentir um turbilhão de sentimentos por uma
mulher que conhecera na madrugada anterior. Em menos de 24 horas, seus mundos
se misturaram homogeneamente, coloridamente.
O celular de Maria toca. Era César. De repente ela se sente mal em estar ali.
- Eu preciso ir, Henrique.
- Tudo bem, Maria.
Ela se levanta e estende a mão ao rapaz de barba rala e olhar ilegal. Num impulso forte, ela é puxada. Acontece um beijo. O beijo. Quente, mordido, forte. O beijo sempre foi ápice dos amantes e sempre será.