Capítulo 02
Amargura
Anos
depois, Maria estava igualmente olhando pela janela, como lá no sítio dos pais.
Dessa vez, a de seu apartamento, numa cidade grande, pensando nisso tudo que
foi descrito anteriormente. Era um apartamento minúsculo, num bairro movimentado. Já não era
a menina Maria do Céu daquela pacata cidade. Era agora uma mulher, com emprego
e rotina. Mudara muito desde a época que entrou num ônibus com uma mochila nas
costas e a cabeça no mar, só no mar. E era o mar a única motivação de Maria
para manter-se firme. Ela bebia um vinho tinto em goles pequenos. Olhava para o
céu, para as luzes, para as pessoas se movimentando lá embaixo, pelas ruas e
bares. Já era tarde. Ela gostava dessa coisa da cidade nunca parar. De tanto
viver calmaria na sua mocidade, ela queria mesmo era barulho e luzes e vozes.
O
vinho era mesmo bom - ela pensava. Só a vida que não. Olhando pela janela,
Maria do Céu pensava em como a solidão a dois era doída. Havia um cara dormindo
no quarto. Ela olhou e viu, pela porta entreaberta, que o pé dele estava para
fora da cama. Solidão a dois era uma coisa amarga demais para uma Maria tão
doce. Aliás, a doçura de Maria do Céu, se perdeu pela metade desde a morte dos
pais, naquele acidente de ônibus, quando estavam vindo visitar a filha estudada,
na cidade grande. A culpa lhe mandava pesadelos quase todas as noites. Agora,
olhando pela janela, ela sentia uma falta absurda da menina sonhadora do
interior. E pedia, intimamente, para o que o tempo voltasse. E sofria com a
certeza do quão impossível isso era.
Maria
do Céu deixa a taça de vinho pela metade na mesinha de centro, pega as chaves e
sai de casa. Era alta madrugada. Ela queria ver o mar. Ela PRECISAVA ver o mar.
Caminhava pelas ruas, sentindo o vento. Maria sentia tudo ao extremo. Os seus
sentidos eram usados sempre os cinco para sentir tudo. Pouco tempo, ela avista
o mar. Sua economia e seu esforço para comprar o AP perto do mar era uma das
poucas coisas pela qual ela jamais se arrependeu. Fechou os olhos e uma lágrima
teimosa e gorda lhe escorreu pela face de menina, mesmo já sendo ela mulher
feita. Sentiu o cheiro do mar. Ouviu o barulho do mar. E respirou fundo, como
quem quisesse sugar o mar para si. Soluçou. Um choro sentido, doído. Maria só
se mostrava frágil assim para o mar, só para o mar. Para o resto do mundo, ela
vestia a casca de forte e bem resolvida. Mas o mar era seu mundo, seu refúgio.
Ele sempre entenderia sua rainha.
Sentada
na areia, sentindo o vento gelado, o cabelo dançando. Talvez o mesmo artista
mencionado por mim no inicio quisesse, mais uma vez, retrata-la. Maria era
linda quando triste. Talvez porque a tristeza já lhe fosse fincada, fundida. Ela
se deu conta que estava numa cidade grande e que ficar sozinha na praia não era
boa ideia. O rapaz do quiosque também. E veio até Maria.
-
Moça, é um perigo ficar aqui sozinha essa hora. Tem um grupinho de drogado que
se te ver aqui, vai lhe fazer mal.
Maria
nem olha para rapaz. Não queria se mostrar assim. Só o mar merecia e tinha a
confiança para tanto.
-
Moça, você está bem?
O
rapaz fala num tom de preocupação. Maria levantou os olhos e revelou a
vermelhidão e o inchaço. O rapaz sentiu vontade de abraça-la. Os olhos daquela
moça pediam urgentemente um colo, um ombro, uma paz.
- Eu
tô bem. Já tô indo pra casa.
-
Você mora perto daqui? Tá sozinha?
-
Moro. Bem perto. Tô sozinha, mas tá tudo bem, moço.
- Eu
já tava indo embora. Meu bar fechou tarde hoje. Se quiser, levo você pra casa.
É perigo voltar sozinha.
-
Não, não precisa. Sua família deve tá te esperando. Não vou incomodar não.
-
Minha família é meu cachorro e meu violão, moça. Vem, vamo sair daqui, que já
acho muita vontade da divindade nos ter mantido salvos até agora.
Estende
a mão para Maria. Ele tinha um rosto de acalento, pensou ela. Têm pessoas que
tem rosto assim. Maria dá a mão e levanta num salto, sacode a areia do vestido
e sorri de leve, num agradecimento.
-
Meu carro tá logo ali. Vou logo avisando que talvez não seja o que a moça
esteja acostumada a andar.
E ele
rir. Maria acha a risada dele gostosa. Sente paz. Como pode? Ela passa anos
procurando paz e encontra numa risada tímida de um estranho?
-
Ah, não se preocupe. Não sou nenhuma ricaça e nem patricinha.
-
Então já gosto de você.
Maria
rir timidamente e evita os olhos do rapaz. O velho medo de se mostrar. Os dois
caminham até o quiosque e há uma mulher esperando na porta. Uma senhora já, mas
muito conservada e bonita. Cabelo vermelho, colar de pedras, vestido longo.
-
Essa é minha amiga Célia. Célia essa é minha amiga...
Ele
lembra que sequer sabe o nome da moça que chama de amiga. Maria se apressa em
completar a frase e se sente mal por também não ter perguntado o nome daquele
rapaz de riso doce e de asas.
- Maria.
Eu sou a Maria, Célia. Prazer.
-
Bonita sua amiga, Henrique.
Ela
diz isso e abre um sorriso acolhedor. Maria sorri como retribuição e como
agradecimento por ela ter revelado o nome do rapaz. Mas mesmo sorrindo, exalava
tristeza e fragilidade.
-
Bom, vamos indo. Célia, tudo fechado? A gente vai dar uma carona pra Maria.
-
Tudo certo. Vamo, que tem uma gentinha esperando um beijo na testa lá em casa,
Rick.
Maria
se dá conta que está aceitando uma carona com duas pessoas que ela nunca viu na
vida e lembra dos conselhos da mãe. Mas aquele rapaz lhe passava tanta paz, que
não teve coragem ser racional e dispensar.
O
carro era uma antiguidade. Bem cuidado e bem bonito. Mas bem antigo mesmo.
Maria acha o veículo lindo e acha que é a cara de Henrique, mesmo conhecendo
ele há poucos minutos. Ela acha aquele pensamento estranho. Mas gostou. Gostou
da pretensão de saber ligar Rick às coisas. No caminho até sua casa, Célia
acende um cigarro e fala sobre o artista que tá tocando no rádio. Algo como:
“sinto falta dos mutantes cada dia mais”. Maria não sabia ao certo se foi isso,
porque estava concentrada em demasia olhando para Henrique. Observava as mãos,
o cabelo desgrenhado, a barba mal feita, a camiseta surrada e com uma frase em
alguma língua que ela não conseguiu entender. Ela estudava aquele estranho que
lhe passava tanta proteção, olhava cada detalhe, milimetricamente. O vidro
estava aberto. A brisa era fria. João, vez ou outra olhava pelo retrovisor e
Maria fugia, quando o olhar dele se chocava com o dela.
- O
que fazia sozinha na praia, essa hora, Maria?
- O
mar me acalma.
Ela
se limita em dizer isso e ele percebe que não é boa hora para insistir em
perguntar mais.
- A
mim também. Acho que nem conseguiria trabalhar longe do mar. Porque eu sempre
tive problemas com rotinas e com vida normal de trabalhador, sabe, Maria?
Então, nem me vejo trabalhando trancado num escritório, onde a frieza das
relações me apertariam mais que a gravata que eu deveria usar.
Maria
acha aquilo bonito. O jeito dele falar. O pensamento dele.
-
Pode parar aqui, Henrique, na frente desse boteco. Meu prédio é esse da frente.
-
Muito bem localizada você, hem Maria! Um bar na frente, praia, cafés e
livrarias bem perto. Invejinha aqui - Célia fala isso meio virada para o banco
de trás, para olhar para a passageira novata. Maria apenas rir sem abri a boca.
-
Está entregue, moça. – Diz Henrique naquela voz mansa e meio rouca.
- Eu
nem sei como te agradecer.
- Me
agradeça indo tomar água de coco no meu quiosque quando for naquela praia. Ou
uma bebida mais forte, se você preferir. Contando que vá. – E abre aquele
sorriso que Maria se encantou de graça desde o primeiro momento.
-
Isso é que é agradecer ganhando.
E
todos riem. E Maria desce do carro. E acena com a mão. Ela espera do lado de
fora até eles sumirem na curva. Olha pra sua janela lá no alto e se sente bem
menos amarga e pesada.
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