Capítulo 03
Pesadelo
Maria
sobe. O elevador estava com problemas há meses e só tinha mesmo a opção de ir
pela escada. Abre a porta devagar pra não fazer barulho. Joga as chaves no
balcão com fotos que fica na entrada e senta no sofá, dez quilos mais leve do
que quando saiu dali. Olha pra taça de vinho pela metade em cima da mesinha e,
num gole só, a esvazia. Leva a taça até a pia da cozinha, que é separada da
sala por um balcão me mármore escuro. Apaga a luz e vai para o quarto. Olha o
homem deitado na cama, num sono profundo. Não sente nada. E é isso exatamente o
que a fere: há tempos não andava sentindo nada quando o olhava. Queria antes
sentir raiva, nojo, pena ou algo de ruim, a não sentir nada. Para ela, não
sentir nada quando se olha para alguém que se vive junto, era uma das dores
piores que se podia carregar.
Tira
os chinelos, num canto da parede, tira o vestido e joga num sexto do banheiro. Enquanto
a água quente lhe cai sobre o corpo, ela ainda ouve a voz do cara da praia. Ela
deita do lado do homem, na cama, olha o relógio em cima do criado mudo e vê que
já são quase cinco da manhã. Percebe que tem cerca de uma hora e meia de sono
apenas e pensa, com tristeza, no dia rotineiro e corrido que lhe espera quando
acordar. O cansaço a faz dormir bem rápido e ela tem então o mesmo pesadelo que
lhe perturba desde a morte dos pais: ela está num balanço bem alto, ainda
menina. Um balanço que fica em cima de um poço de buraco largo e escuro. Ela
balança forte e canta uma música de ninar. Ouve a voz dos pais chamando “Vem,
Maria do Céu”. Nesse momento, ela tenta descer do balanço, mas se ver caindo na
profundeza escura do poço aos seus pés.
Acorda
assustada e se põe sentada na cama. Respiração ofegante, coração batendo forte.
Sensação de todos os dias. Há muitos anos Maria não sabia o que era um
despertar com calmaria e serenidade. Sente o cheiro de café. O homem não está
mais do seu lado e faz barulho de louça pros lados da cozinha. Ela levanta,
prende o cabelo e sai do quarto. Senta na cadeira alta do balcão sem dizer
nada.
-
Quer café, Céu? – pergunta o homem branquelo e de cabelo claro, que estava sem
camisa lavando alguma coisa na pia.
-
Quero. Caiu da cama hoje, foi?
- Dormi muito cedo ontem né.
Mas foi bom, tô descansado. Vou fazer isso mais vezes. Essa de ficar te
acompanhando na madrugada não dá frutos. – ele fala isso enquanto coloca a
garrafa e uma xícara em cima do balcão, para Maria se servir.
- Me
acompanhando? Você fica lendo. Cada um na sua e você vem em falar se companhia?
-
Você não vai começar assim tão cedo, né? – ele fala com tom de “saco cheio”,
mas de forma calma. Ele estava com espírito de diplomacia e totalmente
empenhado em não fazer DR naquele dia.
- Eu
queria mesmo era terminar, não começar. Esse é o problema, César. A gente só
começa as conversas e nunca as conclui. E assim vai levando nesse banho-maria
por pura preguiça de concluir uma coisa que necessita tanto disso. O que mesmo
que a gente tá esperando? – Maria diz isso segurando a xícara alto e olhando
para ele com os olhos inchados, mais do choro, do que do sono.
-
Céu, por favor, hoje eu tô tão bem. Não vem estragar meu dia com suas DR’s, por
favor. – Ele fala sem olhar pra ela, ainda lavando na pia.
- Eu
tô estragando seu dia? Pois a gente desse jeito que tá, tá estrando minha vida,
meu caro.
Nesse
momento ele para o que está fazendo e se vira para Maria, com cara de quem
ouviu uma coisa sem cabimento algum.
-
Céu, eu já quis ir embora e você praticamente implorou pra eu ficar. E eu
fiquei porque eu te amo. Agora você vem de novo me dizer que tô estragando sua
vida? Qual é a sua? O que você quer?
- Eu
quero ser gostada direito, poxa! Quero uma companhia. Minha vida já é uma merda
nessa cidade. Tenho dois amigos, não tenho família, trabalho muito pra ganhar
mal e ainda tenho um companheiro que acha que sexo ruim e jantar fora uma vez
por semana é ser o melhor namorado do mundo.
-
Céu, olha as coisas que você me fala. Você acha que é fácil te amar? Você acha
que é fácil aguentar todos esses seus traumas? Acha que é fichinha aguentar uma
mulher que quase nunca rir de nada, quase nunca tá feliz com nada?
Maria
está olhando nos olhos dele, enquanto ele fala. Os olhos dela estão como duas
poças d’água. Ela sente as mãos tremerem.
- E
o que você faz pra me ajudar nos meus traumas e na minha escassez de alegria,
César? Quando foi a ultima vez que almoçamos juntos, em casa? Quando foi a
ultima vez que fomos ao cinema, que viajamos juntos? Você está sempre ocupado
com suas aulas e suas aluninhas. Elas devem ser mesmo mais interessantes do que
eu. Mais alegres né? Mais quentes.
-
Pelo menos, elas sabem agradecer o que eu faço, mesmo sendo só minha obrigação.
-
Ah, é sua obrigação ir pra cama com elas?
-
Maria, eu vou tomar banho e ir pras minhas aulas. Eu não vou te responder isso,
porque realmente não quero estragar meu dia - ainda mais, aliás.
E
sai pro quarto. Bate a porta.
Ela
percebeu que ele a chamou de Maria. Ele nunca a tinha chamado de Maria. Para
ele, ela era “a Céu”. Foi inclusive o nome dela que os aproximou. Ele,
professor de Piano. Ela, uma aluna interessada em algo lhe entretece nos fins
de semana. Ele dizia que seu nome era poético. E que ela era mesmo tão bela e
fantástica quanto o céu. Dois meses depois, ele dizia que ela era o céu azul e
ele, o passarinho.
A
relação vinha definhando dia após dia. Depois da morte de Seu Ferreira e Dona
Francisca, Maria não se animava com quase nada. Ele, pragmático, apenas ia
levando á maneira dela. Com o tempo, a paixão, antes feroz, foi apagando e
virando só costume. Eles eram acostumados a viverem um com o outro e não tinham
coragem de se deixarem. Covardia é coisa que leva muito amor já morto nas
costas... O amor virou costume.
E
assim Maria do Céu vivia um pesadelo todas as noites e outro todos os dias. E
os dois até se entrelaçavam. Ambos tinham um poço escuro e fundo. Um de água ou
sabe lá o que tivesse naquele fundo. O outro de amor morrido. Aliás, matado.
Devagarinho. Pela falta de brilho.
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